“Cirandaia” de Daniela Mercury — Uma Roda de Afetos, Lutas e Futuros

rítica Cirandaia: Daniela Mercury une Axé, IA e Luta Social
rítica Cirandaia: Daniela Mercury une Axé, IA e Luta Social

No alto de seus 60 anos de vida e mais de 40 de carreira, Daniela Mercury entrega seu 22º álbum, “Cirandaia”, como um ato de celebração e, simultaneamente, de reflexão. Lançado em 17 de outubro de 2025, o disco é um portal que conecta a ancestralidade do samba de roda à urgência de debates sobre o futuro, como o papel da inteligência artificial (IA). O título, um neologismo que funde “ciranda” — a dança coletiva — com “IA”, já sinaliza a intenção da artista: criar uma roda de vozes diversas para pensar o Brasil de hoje e de amanhã.

Inovação Sonora e Experimentação Musical

“Cirandaia” se posiciona como um dos trabalhos mais colaborativos e multifacetados na discografia de Daniela. Se álbuns anteriores como “Balé Mulato” (2005) foram marcos de coesão estética, “Cirandaia” aposta na diversidade como força motriz. A produção musical, que conta com a participação de seu filho Gabriel Mercury, mescla a sonoridade percussiva do axé e dos blocos afro com arranjos que passeiam pelo carimbó, pelo sertanejo e pela MPB.

O álbum abre com a energia coletiva de “Axé Salvador”, uma gravação que conta com a participação de blocos como Ilê Aiyê, Cortejo Afro e Muzenza, reforçando a matriz afro-baiana que fundamenta a obra de Daniela. A experimentação se manifesta na forma como ela costura essas diferentes texturas, criando uma tapeçaria sonora que é ao mesmo tempo familiar e surpreendente. O disco sucede “Baiana” (2022) e parece ser uma evolução natural, ampliando o diálogo da artista com outras gerações e gêneros.

Letras e Temáticas Abordadas

Daniela Mercury nunca se furtou de ser uma artista politizada, e em “Cirandaia” isso não é diferente. As letras abordam temas urgentes como a crise climática, a defesa dos direitos dos povos indígenas e a luta contra o autoritarismo. Em entrevistas, a cantora afirma que seria “impossível não trazer gritos de resistência”.

A faixa “Quem vai segurar o céu?” traz a participação do líder indígena Davi Kopenawa, transformando a canção em um manifesto poético e político. Além das pautas sociais, o álbum explora a espiritualidade e a autonomia do indivíduo, como no single “Deus tem mais ocupação”. O próprio título do álbum é uma provocação para refletir sobre o impacto da tecnologia na sociedade. Daniela não oferece respostas prontas, mas convida à reflexão sobre como queremos usar as novas ferramentas que temos em mãos.

Parcerias e Colaborações

“Cirandaia” é uma verdadeira “ciranda de amigos”, como a própria Daniela descreve. O álbum é um desfile de grandes nomes da música brasileira, que representam a diversidade que o projeto se propõe a celebrar. As colaborações incluem:

  • Chico César: No single “Deus tem mais ocupação”, lançado para celebrar os 60 anos da cantora. A canção, composta por Chico, aprofunda uma parceria que começou com o sucesso “À Primeira Vista” em 1996. A letra é uma reflexão sobre fé, destino e a responsabilidade humana.
  • Alcione: Na faixa “É terreiro”, um hino aos ritmos afro-brasileiros que une duas das vozes mais potentes do país.
  • Zélia Duncan, Dona Onete, Geraldo Azevedo e Lauana Prado: As participações reforçam o caráter inclusivo do álbum, unindo gerações e estilos, do rock militante de Zélia à força do carimbó de Dona Onete.
  • Davi Kopenawa: A presença do líder Yanomami em “Quem vai segurar o céu?” é um dos pontos altos do disco, trazendo uma camada de urgência e ancestralidade.

Recepção Crítica e do Público

Lançado em meio a uma grande expectativa, “Cirandaia” foi recebido como um projeto ambicioso e necessário. Críticos apontam a relevância de um álbum que se propõe a dialogar com tantas frentes, embora alguns questionem se a grande quantidade de participações não compromete a coesão do trabalho, uma característica de álbuns anteriores. Entre os fãs, a recepção foi calorosa, celebrando a energia e a coragem de Daniela em continuar se reinventando e usando sua plataforma para debates importantes.

Conexão com a Cultura Brasileira e a Identidade Baiana

“Cirandaia” é profundamente brasileiro e visceralmente baiano. A identidade baiana não está presente apenas nos ritmos, como o samba-reggae, mas na atitude coletiva e agregadora do projeto. Ao convidar blocos afro para a abertura do disco, Daniela reafirma seu compromisso com as raízes do axé music, movimento do qual é precursora. A “ciranda” proposta no título é uma metáfora para a cultura do Recôncavo Baiano, onde a roda, seja de samba ou de capoeira, é um espaço de comunhão e expressão.

Ao mesmo tempo, o álbum transcende a Bahia ao dialogar com o carimbó paraense de Dona Onete, a música de Cabo Verde com Mayra Andrade e a poesia do sertão paraibano de Chico César, mostrando que a identidade baiana é, por natureza, plural e conectada.

Conclusão: “Cirandaia” é um álbum denso, vibrante e corajoso. Daniela Mercury, como uma grande anfitriã, abre uma roda para celebrar a música brasileira em sua diversidade, sem deixar de apontar para as feridas e os desafios do presente. É um disco que convida à dança, mas também à reflexão, provando que a Rainha do Axé continua sendo uma das vozes mais relevantes e inquietas de sua geração.

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